quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Complexos, nós?

Uma parte de mim é todo mundo.
Outra parte é ninguém
Fundo sem fundo.
Uma parte de mim é multidão.
Outra parte estranheza e solidão.
Uma parte de mim pesa, pondera.
Outra parte delira.
Uma parte de mim é permanente.
Outra parte se sabe de repente.
Uma parte de mim é só vertigem.
Outra parte linguagem.
Traduzir uma parte na outra parte.
Que é uma questão de vida e morte.
Será arte?
Ferreira Gullar


O senso comum rapidamente rotula de "louco" aquele, cujo comportamento não compreende ou considera estranho. A diversidade de comportamentos nos leva, por vezes, a ficarmos sem referência. Estamos ora, na mira de críticas, ora somos aqueles que julgam e classificam o comportamento alheio. Assumir uma maneira própria de ser e agir, não deixa de ser arriscada. Seguimos o coletivo, nos destacamos dele? Fazemos o que todos fazem, rompemos paradigmas, questionamos, nos conformamos? Talvez a possibilidade de alternar nossos comportamentos alivie a angústia e nos forneça uma referência que polarize menos. Reflitamos.

Algumas fronteiras norteadoras: família, cultura, sociedade, contexto histórico, classe social. Os seres humanos estão submetidos a uma variada gama de influências que já começam a interferir na sua pessoa, antes mesmo de serem paridos[as]. A realidade social precede a individual. Mulheres e homens, estão circunscritos[as]  em contextos diversos pautados por códigos morais e sociais, particulares de cada cultura e sociedade. Daí o conceito de choque cultural: o que é aceito, incentivado e bem visto numa cultura, não o é necessariamente, noutra.

Família de origem. Cultura de pertencimento. Classe social. Escolarização. Raça/Etnia. Período histórico em que nascemos e nos desenvolvemos. Sexo. Gênero. Cada uma destas categorias nos identificam, rotulam, classificam. Somos uma mescla de todas estas influências em graus diferenciados. Sem mencionar a natureza biológica que nos rege magistralmente. Compomos um ambiente e simultaneamente nos destacamos dele, apossados de nossa individualidade. Podemos afirmar que somos um sistema onde organismo, emoção, intelecto, memória, imaginação e capacidade de simbolizar se interrelacionam. Podemos acrescentar ainda o inconsciente, instância que nos divide em seres com um mundo interno parcialmente conhecido de si próprio. Nestas breves pinceladas sobre o que nos constitui é possível dar uma visão panorâmica, sobre nossa complexidade.

A Psicologia, assim como outras áreas afins, discutem a respeito de concepções de normalidade e patologia. Fortemente influenciada pelo modelo biomédico, mas abrigada dentro do "guarda-chuva" das Ciências Humanas, as Psicologias se deparam diante desta tarefa árdua de situar referencialmente as pessoas, no que tange aos padrões de conduta. As psicoterapias tem como objeto de estudo o ser humano e o seu modo de existir no mundo. Cabe a esse campo do saber, normatizar? Trazer verdades absolutas, não. Referenciar e relativizar ideias de saúde, sim. Analisar a interação dos sujeitos com as sociedades, também.

A plasticidade comportamental dos seres humanos, nos leva a adotar o seguinte parâmetro norteador: sem reduzir as pessoas a "indivíduos perfeitamente normais" mas, sim concebê-los como contendo em si também o anormal, o que sai do padrão, a possibilidade da transgressão e assim nos pautarmos por uma visão mais ampla e menos excludente. Edgar Morin traz bem essa ideia de homo sapiens e demens. Há uma relação dialógica entre nossas facetas. Ao invés de separar, unificar. Somos a um só tempo, prosa e poesia; insanos e sábios; fortes e fracos; temos e não temos controle sobre nós e os outros. Este autor  nos aproxima dos labirintos da complexidade do que somos e nos tornamos e propõe uma perspectiva unidual do sujeito humano, onde natureza e cultura se aliam. Essa concepção como afirma Carvalho* (2002) implica devolver os seres humanos ao império da natureza, sem retirá-los da república da cultura, descentrá-los de sua superioridade, para reinseri-los na diáspora cósmica universal.


* Carvalho, Edgard. (2002). Edgar Morin, a dialogia de um Sapiens-demens. MARGEM. SÃO PAULO, N 16, P. 167-170, DEZ. 2002   





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